Caríssimos,
Não nos envolvemos em atos políticos e nas decisões dos povos. Mas a propósito do que ocorre hoje em Espanha, pareceu relevante este texto de um escritor ímpar português: Fernando Pessoa e a Catalunha.
Não nos envolvemos em atos políticos e nas decisões dos povos. Mas a propósito do que ocorre hoje em Espanha, pareceu relevante este texto de um escritor ímpar português: Fernando Pessoa e a Catalunha.
FERNANDO PESSOA E A CATALUNHA
A república portuguesa é o primeiro passo dado para a civilização ibérica. Deverá esse fenómeno repercutir-se em Espanha?... Na Catalunha deve ter tido efeito, porque foi o sacudir de um jugo; aparentemente talvez, mas são as aparências que impressionam o estrangeiro.
Para uma união ibérica de qualquer espécie, seja essa espécie qual for, (…) a separação final da península nas suas três nacionalidades essenciais – a Catalunha, Castela e as províncias que conseguiu submergir na sua personalidade, e o estado galaico-português.
(…) Castela imperando antinaturalmente num agrupamento que não conseguiu absorver, porque não absorveu a Galiza nem a Catalunha.
Antes: o espírito ibérico é uma fusão do espírito mediterrânico com o espírito atlântico; por isso as suas duas colunas são a Catalunha e o estado natural galaico-português.
O facto fundamental que nos separa é este: a Espanha é uma nação composta de várias nacionalidades; nós somos uma nação unitária, homogénea, tanto quanto é possível sê-lo uma nação que não é uma mera Andorra ou São Marino.
Resulta dessa radical diferença – à qual a diferença fundamental de clima, e portanto de índole, se junta – uma inevitável e lógica dissemelhança de instituições.
Outro ponto a tratar: radicar cada vez mais as diferenças entre os estados que compõem a personalidade ibérica. Aumentar as diferenças entre a Catalunha, Castela e o estado natural galaico-português. Diferenciar para que a unidade produzida seja uma unidade complexa, e portanto fecunda.
A Catalunha, porém, só tem que escolher entre as desvantagens menores da sua integração, como até aqui em Espanha, embora, porventura, com outras regalias, e as desvantagens maiores da sua independência absoluta. Ninguém na Ibéria lhe dá licença que escolha a terceira, a ignóbil hipótese, que seria a união com a França, a que parece secretamente visar parte da tendência catalanista.
O conflito entre a Catalunha e a Espanha é o conflito entre o conceito nacional de país, e o conceito civilizacional de país. Um conceito é geográfico, supõe-se ser étnico, e afirma-se como linguístico. O outro conceito é histórico, supõe-se ser imperialista, e afirma-se como cultural.
Do ponto de vista nacional, e exclusivamente nacional, a Catalunha é uma nação, um país, com índole própria, tendências especiais, com um idioma à parte, que as define, e uma aspiração, que as deseja.
A Catalunha está para a Espanha exactamente como a Provença para a França. Em ambos os casos a nação cultural se sobrepôs às nações naturais.
Só as línguas imperiais sobrevivem. Só as línguas dos povos que criam império têm direito ao futuro, e, portanto, ao presente nacional. Nós, portugueses, somos um povo pequeno, mas somos um povo imperial, cuja língua alastrou por sobre o mundo, que criámos civilização, e não simplesmente a vivemos.
Na península hispânica, de um lado a outro, nós não somos latinos, somos ibéricos. É preciso assentar nisto, antes de em mais nada. Nada temos, psicologicamente, de comum com os dois países herdeiros da civilização latina propriamente dita – a Itália e a França. Nós não somos latinos, somos ibéricos. Temos – espanhóis e portugueses – uma mentalidade à parte do resto da Europa. Por mais diferenças que nos separem (e elas deveras existem) estamos mais próximos psiquicamente uns dos outros, do que qualquer de nós de outro qualquer povo extra-ibérico.
Se somos ibéricos, temos direito a esperar que tudo deve tender para uma política ibérica, para uma civilização ibérica que, comum aos países que compõem a Ibéria, a todos, porém, transcenda (a cada um deles individualmente transcenda).
Fernando Pessoa
(Texto com o título “Ibéria”, escrito entre 1916 e 1918)
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